Editorial

Formação, formatação e as infinitas formas de ação

Maria Luiza Sussekind Verissimo
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro , Brasil

Revista Praxis

Corporación Universitaria Minuto de Dios – UNIMINUTO, Colombia

ISSN: 2590-8200

Periodicidade: Semestral

vol. 20, núm. 27, 2020

 

Recepção: 15 Julho 2020

Publicado: 20 Agosto 2020



DOI: https://doi.org/10.26620/uniminuto. praxis.20.27.2020.1-4

Um Editorial que tencione em sua contextualidade, atualidade e contemporaneidade a formação das professoras, professorxs e professores é uma escrita arriscada. Riscos que envolvem desde o reconhecimento da uberização do trabalho aos desafios impostos pelo ensino remoto na pandemia, mas que não podem desprezar os mapas abissais que historicizam e interseccionam a tão criticada formação de professores.

Na pauta do dia, há que dizer sobre relações de opressão sobrepostas, numa síntese tenta- doramente perfeita daquilo que os movimentos teóricos procuram entender como intersecciona- lidade (CRENSHAW, 2002). Segundo Kimberlé Crenshaw a intersecionalidade constitui também um desafio, pois ela aborda diferenças dentro da diferença e nos obriga a assumir que “existe um jeito certo de estar na Terra, uma concepção de verdade que guiou muito das escolhas feitas em diferentes períodos da história” (KRENAK, 2019, p.8). E percorrendo territórios nas guerras permanentes por esse mapa abissal, cujas linhas se movem e sustentam

agências e instituições (...) configuradas e mantidas como estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos a sua perpetuação, aceitando suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser. (KRENAK, 2019, p.8)

Enquanto populariza-se a tendência de descolonizar, conhecimentos, currículos, as escolas, universidades e a formação, a tangencia a assunção de que os conhecimentos que se configuraram como ocidentais, eurocêntricos, capitalistas, coloniais,brancos e heteropatriarcais se tornaram hegemônicos. Nesse lugar de poder, tendo imensa preguiça de reconhecer a pluralidade do mundo, acabam por desperdiçar sua humanidade. Assim, se reconhece único, melhor, total e, até mesmo, neutro. Torna-se não só hegemônico, mas único (SANTOS, 2001). Na disputa fronteiriça, resistindo à belicosidade da máquina barulhenta e expansionista (CERTEAU,1994) há corpos, vozes e ações dissidentes que põem fim à Natureza como ordem de sujeição e demandam um novo contrato social. Em que seja possível “aceder a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou como masculinas, femininas ou perversas” (PRECIADO, 2017, p.21).

Resistências, movimentações e deslocamentos, que evocamos como revoluções subalternas (PRECIADO, 2019), enfrentam, borram e empurram as linhas desse mapa de opressões múltiplas, abissais, desenhado pelo o capitalismo, colonialismo, patriarcalismo e fundamentalismos e, distopicamente, diatopicamente, nos comprometem com a produção de presenças, de existências, de vidas, em relações de solidariedade também descolonizadas e humanizadas através do reconhecimento da diferença.

Apostamos nos currículos da formação de professores como território de valorização do pensamento que acredita na diferença e assim provoca deslocamentos e desnaturalizações e desinvizibilizações que agem no sentido de texturizar as conversas sendo necessariamente plurais. E por isso, ousam, metodologicamente, multiplicar as vozes e os aprenderes em praticasteoriaspraticas curriculares que se implicam numa formação dos professores historicizada, cosmopolita (PINAR, 2012) e enredada (ALVES, 2003). Esse tem sido nosso compromisso como formadores de professores, inspirados por “reconstruções cambiantes” (DERRIDA, 2014) e “heranças” que considerem menos a universidade moderna (DERRIDA, 2003) e mais a amorosidade e a justiça derrideanas (SKLIAR, 2008, p.17) que os leva a entender que há que ousar e criar metodologias que arrisquem, por meio de conversas, a capturar essas invenções cotidianas, solidariamente. Consequentemente, tomamos os currículos como conversas complicadas que se desdobram em uma profusão de narrativas que podem ser “interpretadas sob a ideia de travessias curriculares, políticas, epistemológicas e metodológicas de formação e autoformação de professores” (SÜSSEKIND; LONTRA, 2016, p. 87) sempre como travessias únicas, inéditas e humanas, coletiva, cooperativa, mas não comum (SÜSSEKIND, 2014). Assim, entendemos que a formação assim como o currículo “não é que algo passe da imobilidade ao movimento” (SKLIAR, 2014, p. 26), e, nesse sentido, o professor é um artista, e “a conversa complicada é o seu meio” (SÜSSEKIND; PINAR, 2014, p 16). Assim,

quando buscamos horizontalidade e copresença com os saberes e com os não saberes, as travessias curriculares se constituem como espaçotempo de descobertas, de aprendizagem diversificada, de (des)formação significativa e provisória do ser professor (Süssekind; Lontra, 2016, p.93)

Num contexto de ataques à democracia, ao republicanismo, de criminalização dos conhecimentos e daqueles que têm sua criação por ofício, faz-se urgente investir teoricamente, metodologicamente e epistemologicamente numa formação de professores que trabalhe com a resistência no sentido da ontologia da pessoa ordinária, como fez Michel de Certeau (1994). De acordo com o autor, as pessoas comuns, ordinárias – como professores e estudantes – foram mal interpretados como consumidores passivos de ideias. Seria, assim, um erro considerá-los capazes de copiar ou reproduzir livros, conhecimentos, ditados, listas, planejamentos de aulas ou currículos. O reuso, a reinvenção são espaçostempos de abundância de oportunidades e astúcias que o cotidiano, em sua riqueza e insubordinação oferece para que as pessoas comuns possam inverter, subverter, reverter e criar suas práticas e táticas de uso do que lhes é imposto. Assim, em sua ordinariedade, em sua comumnidade, vivendo em comunidade (onde o homogêneo é epistemologicamente inviável e politicamente indesejável) pessoas comuns inventam ideias, interpretações, significados e currículos diferentes todo tempo, em movimentos de bricolagem, negociação e acordo, mas não de unificação/ homogeneização. Contra qualquer forma de pensamento único, contra a redução das escolas e da formação ao ensino, contra a redução do currículo ao conteúdo, contra as políticas de barateamento, vulnerabilização e demonização da formação e da docência, contra o controle patriarcal sobe os currículos escolares e a idolatria de resultados, contra a EaDização da formação superior, contra o antintelectualismo e as práticas divisionistas e negacionistas do fascismo que estimulam projetos de escolas militarizadas e de homeschooling e tantos outros sufocamentos e silenciamentos, nos resta dizer: BASTA.

Referências

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Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Vozes.

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Derrida, J. A. (2014). escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva.

Derrida, J. A. (2003). universidade sem condição. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

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Skliar, C. O. (2014). ensinar enquanto travessia: linguagens, lei- turas, escritas e alteridades para uma poética da educação. Salvador: EDUFBA. 179 p.

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