Maria Cristina Miranda da Silva
crismiranda2@gmail.com
Doctora en Comunicación y Semiótica. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
Recibido: 17 de junio de 2020
Aceptado: 25 de septiembre de 2020
Publicado: 16 de diciembre de 2020
ISSN: 1692-5688 | eISSN: 2590-8057
Cómo citar: Miranda da Silva, M. (2020). Processos Fotográficos Artesanais: experiências artísticas e formadoras para o fazer e o pensar as imagens no tempo presente. Mediaciones, 25 (16). 172-188. https://doi.org/10.26620/uniminuto.mediaciones.16.25.2020.172-188
Este artículo se deriva del Proyecto de Investigaciones Fotográficas que se lleva a cabo en el Colegio de Aplicaciones de la Universidad Federal de Río de Janeiro desde 2013.
La autora ha declarado que no existen intereses en competencia.
Resumo
Em decorrência da produção excessiva, saturada e homogeneizante de imagens na contemporaneidade, diversos artistas vêm se utilizando de processos fotográficos históricos e artesanais como problematização da imagem fotográfica e da criação e reflexão artística. Essas questões lastreiam a pesquisa que vem sendo construída no Projeto Investigações Fotográficas que se realiza no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2013, envolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão na educação básica e na formação inicial e continuada de professores. A pesquisa em curso se desenvolve em três eixos: a) mapeamento de experiências artísticas e formadoras, na área da arte e da educação, envolvendo a produção, a fruição e a ressignificação da imagem fotográfica na contemporaneidade; b) o desenvolvimento de atividades de experimentação e vivência de processos fotográficos artesanais; e c) a reflexão sobre as atividades mapeadas e desenvolvidas no ensino, pesquisa e extensão na educação básica e na formação inicial e continuada de professores. Trata-se de pesquisar os processos fotográficos artesanais na construção de poéticas artísticas e formadoras em relação com o ensino da arte, refletindo sobre o processo educativo em relação com a fotografia, a arte, suas experimentações e interações com tecnologias e a produção e circulação da imagem fotográfica no cotidiano e na contemporaneidade.
Palavras-chave: Processos Fotográficos Artesanais, Ensino de Artes Visuais, Educação Pública, Arte, Fotografia.
Resumen
Como resultado de la producción excesiva, saturada y homogeneizadora de imágenes en la época contemporánea, varios artistas han estado utilizando procesos fotográficos históricos y artesanales para problematizar la imagen fotográfica, la creación y reflexión artística. Estas preguntas respaldan la investigación que se ha desarrollado en el Proyecto de Investigaciones Fotográficas que se ha llevado a cabo en el Colegio de Aplicaciones de la Universidad Federal de Río de Janeiro desde 2013, que involucra actividades de enseñanza, investigación y extensión en educación básica y en capacitación inicial y continua de maestros. La investigación actual se desarrolla a lo largo de tres ejes: a) mapeo de experiencias artísticas y educativas, en el área de arte y educación que involucran la producción, el disfrute y la resignificación de la imagen fotográfica en los tiempos contemporáneos; b) el desarrollo de actividades de experimentación y experiencia de procesos fotográficos artesanales; y c) reflexión sobre las actividades mapeadas y desarrolladas en docencia, investigación y extensión en educación básica y en formación inicial y continua de docentes. Se trata de investigar procesos fotográficos artesanales en la construcción de poéticas artísticas y formativas en relación con la enseñanza del arte, reflexionando sobre el proceso educativo en relación con la fotografía, el arte, sus experimentos e interacciones con tecnologías y la producción y circulación de la imagen fotográfica en la vida cotidiana y en los tiempos contemporáneos.
Palabras-clave: Procesos fotográficos artesanales, enseñanza de artes visuales, educación pública, arte, fotografia.
Abstract
As a result of the excessive, saturated and homogenizing production of images in contemporary times, several artists have been using historical and handcrafted photographic processes to problematize the photographic image and reflect on the artistic creation. These questions support the research being developed in the Photographic Investigations Project carried out at the Application College of the Federal University of Rio de Janeiro since 2013, involving teaching, research and extension activities in basic education and in initial and continuing teacher training. The ongoing research is developed along three axes: a) mapping of artistic and formative experiences, in the area of art and education, involving the production, enjoyment and resignification of the photographic image in contemporary times; b) the development of experimentation activities and experience of artisanal photographic processes; and c) reflection on the activities mapped and developed in teaching, research and extension in basic education and in initial and continuing teacher education. The goal here is to research handcrafted photographic processes in the construction of artistic and formative poetics in relation to art teaching, reflecting on the educational process in relation to photography, art, its experiments and interactions with technologies and the production and distribution of the photographic image in everyday life and in contemporary times.
Key words: Handcrafted Photographic Processes, Visual Arts Teaching, Public Education, Art, Photography.
Em um dia qualquer do século XXI a produção de novas fotografias é maior do que todas as imagens fotográficas realizadas no século XIX. Em 2011, o editor e curador de exposições Erik Kessels (https://www.erikkessels.com/exhibitions) produziu a instalação 24 horas em Fotos abarrotando várias salas do museu de fotografia FOAM em Amsterdam (Holanda), com montanhas de centenas de milhares de fotografias impressas – fotografias postadas durante 24 horas no Flickr, site de compartilhamento de fotos (Poivert & Jones, 2014, p. 115).
A instalação nos leva a refletir sobre a quantidade de imagens colocadas em circulação na Internet diariamente, os modos como consumimos e nos apropriamos das mesmas e, também, como estas imagens passam da esfera privada para a esfera pública quando são carregadas na Internet. São essas imagens digitais com suas características – quantidade, saturação, efemeridade, entre outras – que estão na vida cotidiana das crianças e dos jovens que, ao mesmo tempo, são produtores, reprodutores e consumidores de novas imagens.As estimativas são de que desde o início comercial da fotografia em 1839 até o ano 2000 chegamos a cerca de 100 bilhões de fotografias produzidas. Hoje produzimos facilmente mais do que 10 vezes desta quantidade por ano, com tendências crescentes. Estes números estão além da nossa capacidade de digestão visual. Estima-se que a nossa cultura produziu em torno de 5 trilhões de imagens até 2017, com um acréscimo anual agora de mais de 1 trilhão.A quantidade é indício do automatismo na produção das imagens na contemporaneidade. Conforme explicitou o fotógrafo mexicano Antonio Olmos, em entrevista ao The Guardian, “As pessoas tiram fotografias de sua comida em um restaurante em vez de comê
Em “Filosofia da Caixa Preta”, Flusser (1985), discorre sobre as possibilidades de criação e liberdade numa sociedade cada vez mais programada e centralizada pela tecnologia. As imagens técnicas são produzidas por aparelhos que funcionam como uma “caixa preta” que não se deixa dar a ver seu funcionamento tão facilmente. Seu funcionamento é programado e aquele que fotografa está submetido às possibilidades finitas e previamente programadas.
De fato, como nos lembra Arlindo Machado (2008), as câmeras fotográficas atuais– não somente as dos aparelhos celulares – “estão automatizadas a ponto de até mesmo a fotometragem da luz e a determinação do ponto de foco serem realizadas pelo aparelho.” Como vimos nos trabalhos de Umbrico, a “repetição indiscriminada das mesmas possibilidades conduz inevitavelmente à esteriotipia, ou seja, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados.” Assim, para que sejam produzidas novas categorias de imagens, não previstas na concepção original do aparelho, “seria necessário intervir no plano da própria engenharia do dispositivo (...) penetrar no interior da caixa preta e desvelá-la” (pp. 45-49).
Conforme Machado (2008), numa perspectiva flusseriana, o verdadeiro criador, o artista, é aquele que subverte “continuamente a função da máquina ou do programa que ele utiliza”, manejando-os “no sentido contrário ao de sua produtividade programada” (p.14). Para isso, torna-se necessário conhecer o seu funcionamento.
Podemos estabelecer aqui uma relação com os aparelhos ópticos que foram criados no século XIX, precedendo a invenção do cinema. O funcionamento desses aparelhos, criados no bojo dos estudos fisiológicos da época, estava diretamente vinculado ao funcionamento do corpo, seja naqueles que buscavam a ilusão do movimento, possibilitada pelo fenômeno da ‘persistência da imagem na retina’, ou naqueles que procuravam a ilusão de relevo e profundidade, possibilitada pelos estudos sobre a ‘disparidade binocular’.
Torna-se importante resgatar os usos diferenciados e o tipo de experiência destes aparelhos ópticos: a habilidade de mostrar a construção subjetiva (porque formada no ‘corpo’ do sujeito) da imagem em movimento (fenaquitoscópio e seus ‘aperfeiçoamentos’) ou em profundidade (imagens estereoscópicas), e de configurar um observador ao mesmo tempo consciente da ação de olhar e das capacidades ilusórias da imagem. Trata-se de considerar a experiência do real por meio da conjugação do conhecimento, do entendimento e da sensibilidade (Miranda da Silva, 2006).
O resgate da história desses aparelhos ópticos, a partir da contextualização da sua invenção e utilização no século XIX, permitiu evidenciar duas de suas qualidades: 1) a capacidade de transparecer a sua estrutura de funcionamento, e 2) a capacidade de fornecer ao observador imagens ilusórias, seja a partir do movimento, seja a partir da noção de profundidade. Denominamos essas qualidades de ‘visibilidade’ e ‘fantasmagoria’ e acreditamos que, assim como foram essenciais na formação do observador da modernidade (Crary, 1990), tornam-se fundamentais para a compreensão da produção imagética na contemporaneidade. A reflexão, portanto, inicialmente dirigida aos aparelhos que coexistiram no momento anterior ao primeiro cinema, pode ser estendida hoje às imagens fotográficas produzidas em sua origem histórica.
Pensar a fotografia hoje em sua relação com a arte, significa pensar a fotografia em relação ao seu dispositivo de criação; pensar a fotografia para além da fotografia; pensar a fotografia antes mesmo da fotografia. Em outras palavras, pensar a fotografia de forma “expandida”, como definido por Fernandes Junior (2002). Nesse sentido, da mesma forma que buscamos na arqueologia do cinema e na função social que os aparelhos ópticos do século XIX cumpriram na formação do observador da modernidade, propomos na pesquisa do Projeto Investigações Fotográficas retomar os procedimentos históricos e artesanais da produção da imagem fotográfica na construção de poéticas artísticas e formadoras em relação com o ensino da arte.
Como forma de introduzir questões filosóficas sobre a imagem e propiciar a construção de poéticas visuais e reflexões no campo da arte em atividades de ensino, pesquisa e extensão na educação básica e na formação inicial e continuada de professores, temos nos referenciado no trabalho de diversos artistas e educadores e num conjunto de atividades que remontam à própria história da fotografia, desde a Camara Obscura, na captação da luz e projeção das imagens, até o momento da fixação e impressão dessas imagens – a escrita da luz – por meio de técnicas fundadoras como a antotipia, a cianotipia e o fotograma. As experiências artísticas inspiram trabalhos e reflexões com técnicas históricas que transformam o olhar do presente.
Nos anos de 1960-70 a fotógrafa e artista Regina Alvarez (1948-2007), ao viajar para o exterior para estudar fotografia, conheceu a técnica denominada Pinhole2e no retorno ao Brasil passou a utilizá-la com fins educativos como forma, naquele momento, de democratizar o ensino da fotografia a partir da produção de câmeras artesanais. Trata-se de produzir uma imagem por meio de um dispositivo, mas, antes disso, construir o próprio dispositivo, apreendendo nesse processo as relações entre a captura da luz e a produção de imagens.
Conforme Costa (2015), Regina Alvarez estudou os processos alternativos de produção e impressão de imagens na Birmingham School Of Art (Inglaterra, 1975-1977) descortinando “um campo investigativo que vinha se delineando desde o início dos anos de
1970 em sua formação na Escola Nacional de Belas Artes (RJ, Brasil) e em suas atividades como arte-educadora na Escolinha de Artes do Brasil3” (p.14), adotando em seu retorno ao Brasil um projeto de inclusão visual de crianças, jovens e adultos.
Nas palavras da própria Alvarez (como citada em Costa, 2015): “Quando iniciei minha atividade fotográfica (...) a sofisticação das modernas máquinas havia criado o mito técnico que afastava os pretendentes à arte fotográfica, diante do enigma da máquina” (p. 14).
Pensar a fotografia a partir da produção artesanal de uma câmera fotográfica nos faz caminhar a contrapelo, para utilizar uma alegoria benjaminiana, na história da imagem técnica. Reproduzindo o funcionamento do olho e, portanto, o da câmera fotográfica analógica, a câmara escura é um dispositivo que, tal como nos aparelhos ópticos de movimento ou binocularidade das imagens, possibilita visibilidades e fantasmagorias na sua fruição. Sua construção e vivência servem como sensibilização para questões práticas e conceituais, tanto as relacionadas às suas funcionalidades (diafragma obturador velocidade de exposição objetiva ISO profundidade de campo), quanto na experiência de magia e encantamento do ato de ver e fruir a imagem que se forma invertida em seu interior.
Nesse sentido, é preciso destacar o trabalho do artista/educador, Miguel Chikaoka (Belém-PA), que desenvolveu uma metodologia de construção de câmeras escuras em uma folha de papel cartão, apenas com dobras (como na técnica do Origami), sem utilização de tesoura, e por meio de uma dinâmica de concentração no material trabalhado e de observação do passo a passo da construção do dispositivo. Conforme Chikaoka (2015, p. 129), trata-se de
facilitar o entendimento da fotografia a partir do reconhecimento da luz como matriz do processo. Ou seja, entender que, não importa a marca, modelo e tamanho da câmera, o principio da formação e captura da imagem se processam pela e com a natureza da luz, chamando a atenção para o que acontece no nosso olho.O mesmo dispositivo vem sendo utilizado por artistas/educadores em sua forma imersiva, como Paula Trope, com o projeto Câmera-Luz – uma grande câmera móvel (Londrina-PR, 2010) e Rosa Bunchaft (Salvador-BA, 2015), com o “Cinema Baldio”, uma câmera escura em movimento construída a partir de um balde. Além de trazer o debate originário da formação da imagem pela luz, essas vivências possibilitam a investigação do papel do corpo na percepção. No caso do “Cinema Baldio”, um trabalho performático, pois uma parte do corpo está fora do balde, somente a cabeça está imersa; e para ver as imagens projetadas no interior do balde se movimentarem é necessário que o observador também se mova, caminhe. A experiência aponta, ainda, para a efemeridade das imagens, posto que a cada movimento do corpo a imagem projetada no interior do balde vai se modificando.
Figuras 1 e 2.Em: “Mundo Virado na Praça” Oficina de construção de câmeras escuras em dobradura de papel cartão organizada por Myllena Araújo (bolsista PIBIAC, EBA-UFRJ).
Acervo Projeto Investigações Fotográficas. (2018).
Figuras 3, 4 e 5. Em: figuras 3 e 4 Câmara escura imersiva (2x2m) no pátio do Colégio e imagem invertida vista do seu interior. Em: figura 5 Oficina Cinema Baldio. Acervo Projeto Investigações Fotográficas. (2017).
Acervo Projeto Investigações Fotográficas. (2015).
O mesmo balde utilizado na expêriencia imersiva se transforma em câmera pinhole. Ou seja, as mesmas imagens observadas no interior da câmera podem ser fixadas em uma superfície sensível à luz e, depois, impressas. A fotografia pinhole proporciona qualidades estéticas diferenciadas das imagens digitais a que estamos habituados. Este tipo de câmera não possui visor e, consequentemente, os enquadramentos são escolhidos com menor controle sobre o que entra no quadro. O orifício feito de forma artesanal – um furo de agulha – também leva a um menor controle da quantidade de luz captada, que dependerá do tamanho do furo e de sua relação com o diâmetro do corpo da câmera (a caixa escura). A ausência de lentes, somada a estes fatores implica em fotografias com menos detalhes, na contramão da imagética hiper-realista da contemporaneidade digital. A imagem resultante é menos “controlada” por aquele que a produz, revelando, por vezes, efeitos ‘surpresa’ na iluminação, na cor, no contraste, na forma, que contribuem para uma outra poética, baseada no acaso e na indeterminação do resultado.
Destacamos o trabalho educativo da fotógrafa Tatiana Altberg, desenvolvido na Maré4, desde 2003, com o Projeto Mão na Lata (http://www.maonalata.com.br/index). A partir da construção de câmeras pinhole com latas, e de narrativas literárias, crianças e jovens desenvolvem um olhar crítico e poético sobre seu cotidiano, e se apropriam criativamente das infinitas possibilidades de seu imaginário para refletirem sobre as noções de identidade e de comunidade.
Conforme Tatiana Altberg (2015) é preciso ressaltar o uso da fotografia em preto e branco, que não é uma exclusividade da fotografia pinhole, mas é um recurso tão expressivo quanto pedagógico, no sentido em que o pensamento fotográfico passa a lidar com conceitos abstratos. O tempo “expandido” da produção fotográfica artesanal, que pode durar de minutos a horas, dias e anos, também é um importante “contraponto pedagógico”, aguçando a percepção e retomando as possibilidades de contemplação, escuta e silêncio, tão raras nos tempos atuais.
O que pode parecer limitação técnica, na verdade, torna-se a potência do trabalho educativo. Considerando que em cada lata apenas um papel fotográfico ou filme pode ser utilizado por vez para tomar as imagens, a escolha do objeto a ser fotografado também é mais trabalhada, ao contrário das sequências infinitas tomadas pelos aparelhos celulares, que podem ser editadas e deletadas. A ausência de visor também produz um efeito de escolha mais apurada dos ângulos e enquadramentos a serem utilizados. Nesse sentido, a fotógrafa estabelece uma relação da fotografia artesanal com o pensamento, com um “olho pensante”, que produz imagens diferentes das imagens a que nos submetemos no cotidiano, de estranhamento, de caráter onírico, descoladas da visão da realidade imediata e levando a discussões sobre o “real” na imagem fotográfica (Altberg, 2015, pp. 159-160).
Outra característica importante de ser relacionada a esta técnica é a possibilidade dos estudantes vivenciarem o processo de revelação e ampliação das fotografias em laboratório. Com as câmeras produzidas em latas ou caixas utilizamos papel fotográfico industrializado. A imagem que se forma no interior da câmera é produzida em negativo. No laboratório, envolve etapas como as químicas de revelação, interrupção e fixação. Após essas etapas, pode ser positivada em processo de digitalização, possibilidade contemporânea de um trabalho híbrido entre as técnicas.
Experimentar as diferentes etapas deste processo se torna parte importante da vivência fotográfica para a ressignificação das imagens na contemporaneidade. Por exemplo, conhecer e compreender o processo de produção dos daguerreótipos (de LouisJacques-Mandé Daguerre), que fixou as imagens em placas de metal, refletindo sobre as questões do tempo de exposição (como na primeira fotografia que inclui a figura humana– Boulevard du Temple, 1838 – que fixou na imagem dois homens, um engraxate e seu cliente – os únicos que estavam relativamente imóveis durante o tempo de exposição) e relacionando ao trabalho do fotógrafo alemão contemporâneo Michael Wesely que utiliza câmeras construídas por ele que permitem expor um mesmo negativo ao longo de muitos anos, condensando diversos momentos em uma única fotografia, como nas imagens da reforma da Postdamer Platz em Berlim (Fatorelli, 2013, pp.103-104).
Da experiência com a daguerreotipia, destacamos o brasileiro Francisco Moreira da Costa (um dos 30 daguerreotipistas contemporâneos do mundo), que desenvolve seu trabalho com base em manuais fotográficos do século XIX. O daguerreotipista ofereceu uma oficina ao projeto durante o Seminário Escrever com Luz (2015), destinada a educadores e estudantes do CAp-UFRJ. Ressaltamos nesta técnica o caráter único da imagem – que somente pôde ser reproduzida a partir das técnicas digitais e, ainda, o fato de conter, ao mesmo tempo, a imagem em negativo e em positivo na sua superfície espelhada que inclui na imagem observada o próprio ato de ver e o observador.
O uso massivo e indiscriminado das câmeras de smartphones na atualidade pelos jovens, se, por um lado, democratiza o ‘ato fotográfico’, por outro, massifica e homogeneíza as imagens e o olhar, desarticulando os atos de produzir e pensar a imagem. Nesse sentido, trabalhar os processos fotográficos artesanais com crianças, adolescentes, jovens e educadores possibilita desconstruir e estranhar essas imagens pré-fabricadas pelas mídias massivas (sobretudo por meio da propaganda), objetivando uma reflexão sobre a produção e reprodução dessas imagens. Conforme já apresentado por Flusser (1985), um aparelho, qualquer que seja, traduz um tipo de pensamento, um conceito. Construir sua própria câmera, nesse sentido, pode ser um caminho para que esses conceitos sejam problematizados, reorganizados, recriados. Nas palavras de Regina Alvarez (como citada por Cathilina, 2010, p. 16),
(...) A fotografia desempenha um papel fundamental na sociedade, pois resgata valores, humaniza e conscientiza o indivíduo não só como ser humano, mas também como agente transformador responsável que influi, modifica e atua na sociedade e no seu meio ambiente.Em meados da década de 1960 vários artistas passaram a experimentar a técnica pinhole e incorporá-la em seus trabalhos. O italiano Paolo Gioli (http://www.paologioli.it/) construiu diversas câmeras utilizando diferentes materiais: cone de sinalização de trânsito, botões, nozes, biscoitos cream cracker. Tudo que pudesse ser adaptado se transformava em câmera. Em sua série Pugno stenopeico (1989), Gioli utilizou seu próprio corpo, sua mão com punho cerrado, como câmera para fazer autorretratos. No mesmo sentido, o físico e engenheiro Luis Alberto Guimarães (https://www.laguimaraes.com/ texto-paisagens-minimas), desde 2006 vem desenvolvendo no Brasil um trabalho fotográfico a partir de diversos modelos de câmeras pinhole. Como descreve em sua página eletrônica,
No momento em que todos os esforços, investimentos e interesses estão direcionados para as máquinas com tecnologia digital e o incremento dos seus megapixels – cada vez mais e mais qualidade técnica na informação visual – procuro aqui investigar no sentido oposto, ou seja, os limites inferiores suportáveis para a informação contida nas imagens obtidas através de aparelhos artesanais. (para. 1)
Além da visibilidade/compreensão de seu processo de funcionamento, as câmeras pinhole propiciaram experiências importantes em relação ao tempo e ao campo de visão dos estudantes. Quanto maior a distância do furo ao papel/filme, maior o tempo de exposição, dependendo também da luminosidade do local. Esse tempo diferenciado de exposição cria outra temporalidade na imagem, afinal, desde as câmeras automáticas não costumamos esperar 5, 10, 20 minutos para uma foto ficar ‘pronta’. Imagens sem foco definido, poses longas, paisagens fantasmagóricas, as imagens obtidas pelas pinhole são diferentes e, pouco a pouco, modificaram o olhar dos estudantes.
Figura 6. Em: Fotografia pinhole. Favela Nova Holanda. Projeto de Ricardo Kranen (bolsista PIBIC, FAU-UFRJ).
Acervo do Projeto Investigações Fotográficas. (2015)
O artista paraense Dirceu Maués (2012) vem somando a essas reflexões o entrelaçamen to entre fotografia e cinema, em especial por meio de fotografias panorâmicas. Em 2006, o artista realizou em stop motion (técnica de animação quadro a quadro), o filme ...Feito poeira ao vento, a partir de uma sequência de mais de 900 fotografias captadas por câmeras pinhole produzidas em caixas de fósforos. O filme explora a movimentação e o burburinho dos trabalhadores e frequentadores do Mercado Ver-o-Peso, na zona portuária de Belém do Pará (Brasil), exibindo do seu agitado início ao esvaziamento no final, “a transmutação do espaço/ movimento [e espaço/tempo] da feira em um giro de 360 graus” (Maués, 2012, p. 16).
Maués (2012) traz para a contemporaneidade questões históricas, técnicas, filosóficas e teóricas importantes sobre a fotografia e o cinema que podem ser trabalhadas na educação do olhar ou, conforme Crary (1990), na formação do observador da modernidade e, portanto, também do espectador contemporâneo.
No filme realizado com fotografias pinhole, a experiência do movimento nos remete a um momento anterior, a um primeiro momento do cinema, na visibilidade de sua construção e nas imagens fantasmagóricas, assim como à reflexão sobre a arte e o aparato tecnológico – o artista como aquele que deve explorar ao máximo as potencialidades da tecnologia – como uma das formas de pensar o cinema na escola, explorar as tecnologias da imagem e experimentação e a fruição da linguagem audiovisual na produção de sentido. A apropriação que a arte faz do aparato tecnológico que lhe é contemporâneo. Tecnologias sempre são desenvolvidas segundo os princípios da produtividade e racionalidade no interior de ambientes industriais e dentro da lógica da expansão capitalista. O artista é aquele que reinventa o aparato, explorando novas utilizações, ressignificando-o.
Em sua escritura do tempo no espaço, o filme (re)organiza o observador das imagens, situando-o entre o ver e o não ver e produzindo deslocamentos em relação ao modelo hegemônico de cinema. Relacionamos a passagem da estaticidade da fotografia ao movimento intrínseco à imagem cinematográfica indicando a coexistência de visibilidades e fantasmagorias na produção de imagens e a importância deste estudo para o cinema-educação.
Inspirados no filme de Maués, realizamos com um grupo de estudantes de licenciatura no Colégio de Aplicação o filme experimental Cinema Pinhole (2015). Para tanto, produzimos câmeras artesanais a partir de caixas de fósforos e utilizamos 60 filmes/películas de 35mm. As imagens captaram a entrada e saída escolar e, num giro de 360o como no filme de Maués, o pátio da escola, registrando as crianças em suas atividades diárias. O trabalho envolveu a comunidade escolar, curiosa com as câmeras de caixa de fósforos e com a movimentação das filmagens/fotografias, e resultou em aulas “públicas” e experimentações com as crianças. A realização do filme, as experimentações derivadas e as reflexões suscitadas, levaram para a comunidade escolar questões conceituais e filosóficas relativas à história da fotografia e do cinema e às imagens contemporâneas. As transformações na experiência do olhar foram, assim, se apresentando e sendo relacionadas a cada época vivida e suas sensibilidades específicas.
Figura 7. Em: Quadro do filme Cinema Pinhole
Acervo Projeto Investigações Fotográficas (2015).
Uma das artistas visuais brasileira que mais tem produzido reflexões sobre a imagem fotográfica na contemporaneidade é Rosangela Rennó (http://www.rosangelarenno.com.br/). No trabalho “A última foto” (2006), a artista convidou 43 fotógrafos para produzir uma imagem do Cristo Redentor se utilizando de máquinas fotográficas analógicas (mecânicas) que ela vinha colecionando ao longo do tempo. As câmeras possuíam formatos diferentes, desde as câmeras de chapa 9 cm x 12 cm, do início do século XX, até as câmeras portáteis reflex, para filmes 35mm, dos anos de 1980. Após as fotos produzidas, as câmeras foram lacradas e expostas em 43 dípticos compostos pelas câmeras e a última foto registrada.
Ao contrário do que se pode aferir numa primeira mirada, a referida obra não trata do fim da fotografia analógica, mas da reinvenção da memória da fotografia, subjacente nas câmeras antigas e atualizada no presente. Conforme Brasil e Migliorin (2007, para. 4), “As câmeras antigas não fazem imagens antigas, elas são sempre nossas contemporâneas”. O olhar de cada fotógrafo é impregnado das questões contemporâneas. Se utilizar dos aparatos técnicos e das técnicas de impressão do passado não significa, portanto, um retorno ao passado, mas uma atualização desse passado. Trata-se de considerar o presente como abertura ao passado e ao futuro, como já apontado por Benjamin (1994),
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. (...) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência (...). (p. 224)Nesse sentido, as atividades artísticas e formativas pesquisadas, assim como as experiências desenvolvidas pelo Projeto Investigações Fotográficas, de experimentação e vivência de processos fotográficos artesanais, têm contribuído para o aprofundamento das reflexões sobre o fazer-pensar imagens no tempo presente.
Notas de rodapé
1 Criado em 1948, o Colégio pertence a UFRJ e tem como função social a formação inicial e continuada de professores. Atende anualmente cerca de 860 estudantes da Educação Básica (Educação Infantil ao Ensino Médio) e 500 estudantes de licenciaturas de diferentes áreas de ensino. O Colégio é público e gratuito e o acesso se dá mediante sorteio público.
2 Do inglês Pin-hole, que quer dizer buraco de agulha, uma câmera de orifício, sem lente.
3 A Escolinha de Arte do Brasil (EAB), criada em 1948, no Rio de Janeiro, Brasil, inspirada nas idéias do filósofo e teórico da arte Herbert Read (1893-1968), teve importante papel no ensino da arte no país, reunindo educadores como Augusto Rodrigues (1913-1993), Anísio Teixeira (1900-1971) e Helena Antipoff (1892-1974).
4 A favela da Maré está localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, possui aproximadamente 140 mil habitantes em 16 comunidades. Em virtude de frequentes incursões da polícia militar possui elevado número de jovens mortos direta ou indiretamente em confrontos policiais. Foi neste bairro que viveu Marielle Franco.
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