Artículo de investigación científica y tecnológica

Tecendo narrativas: a transexualidade na telenovela “A força do querer” e no canal “ParaTudo de Lorelay Fox” 1

Weaving narratives: on transsexuality in the soap opera “A força do querer” and in the channel “Para Tudo de Lorelay Fox”

Tejiendo narrativas: la transexualidad en la telenovela “La fuerza del querer” y en el canal “Para todo de Lorelay Fox”

Josefina de Fátima Tranquilin-Silva
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Georgia de Mattos
Universidade de Sorocaba., Brasil

Revista Mediaciones

Corporación Universitaria Minuto de Dios – UNIMINUTO, Colombia

ISSN: 1692-5688

Periodicidade: Semestral

vol. 15, núm. 23, 2019

 

Recepção: 20 Outubro 2019

Aprovação: 12 Dezembro 2019

Publicado: 27 Dezembro 2019



DOI: https://doi.org/10.26620/uniminuto. mediaciones.15.23.2019.1-25.

Resumo: Danilo, criador de Lorelay Fox – drag queen, youtuber e artivista LGBTIQ – torna-se ouvinte de uma receptora da telenovela “A força do querer”, a qual constrói sua narrativa a partir da transexualidade da/do personagem Ivana/Ivan. Após a escuta, Lorelay apresenta em seu canal, no YouTube, o vídeo “Meu relato sobre a novela ‘A força do querer’” e este conteúdo leva às narrativas das juventudes, suas interlocutoras. Este artigo propõe refletir sobre essa tessitura de narrativas, que tem como foco a transexualidade da/do personagem Ivana/Ivan. Objetiva analisar como esta personagem foi produzida na telenovela, a partir das relações de gênero imbricadas na experiência transexual; e investigar as mediações entre as narrativas presentes nesse processo comunicativo: telenovela, receptora, ouvinte Danilo, produtora de conteúdos digitais, Lorelay Fox e as juventudes que com ela interagem. Concluímos que o cotidiano vivenciado por todos neste processo comunicativo, estrutura a intertextualidade comunicacional, que promove a visualidade e a visibilidade das identidades individuais e coletivas, podendo reconstruir subjetividades e, dessa forma, as experiências trans podem ser um pouco mais autorizadas, em um modo de existir midiatizado.

Palavras-chave: juventudes, gênero, transexual, mediação, midiatização.

Abstract: Danilo, creator of Lorelay Fox - drag queen, youtuber and LGBTIQ artivist - becomes a listener to a receptor of the soap opera “A força do querer”, which builds her narrative from the transsexuality of the character named Ivana/Ivan. After listening, Lorelay presents in her YouTube channel the video called “Minha história sobre a novela ‘A força do querer’” and this content leads to the narratives of the youths, her interlocutors. This article proposes to reflect on this texture of narratives, which focuses on the transsexuality of Ivana/ Ivan. It aims to analyze how this character was produced in the soap opera, from the gender relations imbricated in the transsexual experience, and investigate the mediations present in the narratives in this communicative process: telenovela, receptor, listener Danilo, producer of digital content, Lorelay Fox and their interlocutors. We conclude that the everyday situations shared in these multiple narratives gives visibilities to individual and collective identities, as well as (re) constructs subjectivities and, throught that the trans experiences may be a little more authorized, in a mediatized mode of existence.

Keywords: youths, gender, transsexual, mediation, midiatization.

Resumen: Danilo, creador de Lorelay Fox – drag queen, youtuber y artivista LGBTIQ – se vuelve oyente de una receptora de la telenovela “La fuerza del querer”, la cual construye su narrativa a partir de la transexualidad del personaje Ivana/Ivan. Después de la audición, Lorelay presenta en su canal de YouTube el video “Mi relato sobre la novela ‘La fuerza del querer’” y este contenido lleva a las narrativas de las juventudes, sus interlocutoras. Este artículo propone reflexionar sobre esa tesitura de narrativas, que tienen como foco la transexualidad del personaje Ivana/Ivan. El objetivo es analizar como este personaje fue producido en la telenovela, a partir de las relaciones de género imbricadas en la experiencia transexual, e investigar las mediaciones presentes en las narrativas en este proceso comunicativo: telenovela, receptora, oyente Danilo, productora de contenidos digitales, Lorelay Fox y sus interlocutores. Concluimos que lo cotidiano compartido en estas múltiples narrativas da visibilidades a las identidades individuales y colectivas, así como, (re)construye subjetividades y, de esta forma, las experiencias trans pueden ser un poco más autorizadas, en un modo de existir mediatizado.

Palabras clave: jóvenes, género, transexual, mediación, mediatización.

Introdução: de onde partimos?

Além de sermos receptoras assíduas das telenovelas da Rede Globo de Televisão, nossas pesquisas têm como objetos/sujeitos de estudos os produtos culturais midiáticos e as temáticas que giram em torno das questões de gêneros. Esta proximidade nos levou a idealização deste artigo, quando em um encontro casual na universidade, conversamos sobre o vídeo “Meu relato sobre a novela ‘A força do querer’”, criado e publicado pela drag queen e artivista digital LGBTIQ, Lorelay Fox, em seu canal “Para Tudo”. O vídeo teve 86.812 mil visualizações, dentre elas, houve 17 mil curtidas positivas e apenas 55 negativas.

O conceito deste vídeo, segundo Lorelay Fox, surgiu quando Danilo – o criador da drag – estava conversando com sua diarista, na varanda do seu apartamento, em São Paulo, e ela começou a lhe contar sobre a transexualidade da personagem Ivana (Carol Duarte), problematizada na telenovela brasileira “A força do querer”, de Gloria Perez (produzida e veiculada pela Rede Globo de televisão, no horário nobre).

Ao visualizarmos este conteúdo, interessou-nos a tessitura das narrativas sobre a transexualidade presente na telenovela, exposta por Lorelay: uma receptora – diarista, com 70 anos e, segundo Lorelay, “uma senhorinha, bem senhorinha mesmo” –, que assistiu a telenovela na televisão, contando as problematizações sobre transexualidades ao Danilo – que é drag, gay, artivista LGBTIQ, youtuber e não assiste telenovelas. Assim, nossa pergunta de partida para este artigo é: qual a importância das narrativas ficcionais nesta intertextualidade? Esta indagação nos levou aos objetivos deste artigo: analisar como a personagem transexual, Ivana/Ivan, foi produzida na telenovela, a partir das relações de gênero imbricadas na experiência transexual e investigar as mediações entre as narrativas presentes nesse processo comunicativo, vivenciado no processo de midiatização.

Para atingir os objetivos traçados, analisamos a construção da transexualidade na telenovela, utilizando o instrumento analítico do Circuito da Cultura, desenvolvido por Paul du Gay et al. (1997), aporte teórico-metodológico dos Estudos Culturais, que privilegia a cultura em seus estudos, num sentido antropológico, entendida enquanto um conjunto de práticas sociais. E para analisar o processo comunicativo do vídeo de Lorelay Fox, com seus sujeitos interlocutores, utilizamos a observação etnográfica digital (TRANQUILIN-SILVA, 2017a).

A telenovela “A força do querer” e o canal “Para Tudo de Lorelay Fox”

A telenovela “A força do querer”, exibida pela Rede Globo de Televisão, no horário nobre, entre abril e outubro de 2017, de autoria de Glória Perez, trouxe à tona, pela primeira vez em uma telenovela, os conflitos sobre a transexualidade, vivenciados pela personagem Ivana, que em um determinado momento do enredo, assume a sua transexualidade, reconhecendo-se como Ivan, um menino. “Ivana quer resgatar sua identidade, é um homem que nasceu num corpo de mulher” (NOVA..., 2017). A personagem tem dificuldade para compreender esse conflito, por diversas vezes tenta obter respostas ao se olhar no espelho, mas não se reconhece nele.

Passa por um longo processo de autodescobrimento. Tenta se acomodar aos modos e modelos femininos, descobre que não é lésbica, pois se apaixona por seu amigo Cláudio (Gabriel Stauffer), com quem tem sua “primeira noite”, mas o deixa, uma vez que os conflitos interiores a atormentam e é impossível construir uma relação em meio a ele. Mantêm longas conversas com sua confidente, a prima Simone (Juliana Paiva), com quem sempre desabafa e recebe conselhos. Até o dia em que conhece T. Brant e descobre que, assim como ele, é transexual.

Após dar início ao processo de transição, vestir-se como homem e tomar testosterona, a personagem reúne a família e revela que é transexual. A partir desse momento, passa a enfrentar as situações preconceituosas, a começar pela sua família, o estranhamento de amigos, olhares maldosos e as provocações na rua. Ivan descobre gravidez, mas perde o bebê ao sofrer violência física. Apesar de todos os percalços, a trama termina com Ivan realizado, após a cirurgia de mastectomia e ao lado de seu amor, Cláudio, demonstrando que um homem cisgênero heterossexual se relaciona e se apaixona, naturalmente, por um transhomem.

Já Lorelay Fox é uma personagem drag, criada há muitos anos pelo publicitário e ilustrador Danilo Debague. Em maio de 2015, Danilo criou, no YouTube, o canal “Para Tudo de Lorelay Fox”. Com sua habilidade como profissional da comunicação e seu ativismo LGBTIQ, Lorelay Fox se torna artivista de gênero e uma influenciadora importante nas redes digitais. (TRANQUILIN- SILVA, 2017a)

Fascinante em sua estética pop, Lorelay Fox inicia o vídeo “Meu relato sobre a novela ‘A força do querer’” dizendo que muitas pessoas perguntam se ela está assistindo esta telenovela da Globo, “que está abordando o tema de transexualidade, que tem drag queen, enfim, que está trazendo temas da diversidade para a noite da família brasileira”. Segue dizendo que contará uma história marcante que aconteceu com ela, a respeito dessa novela. Narra que estava na varanda de seu apartamento, com a “senhorinha, bem senhorinha mesmo” que a ajuda a arrumar a casa, a cada 15 dias. Em tom surpreendente, Lorelay diz: “Ela contava, mano, de uma maneira, assustadoramente normal... tem lá uma menina, que não se sente menina, que ela se sente como homem” e começou a contar toda a trama da novela, que “envolvia a transexualidade, de uma maneira tão natural” (FOX, 2017). Quando percebe que a receptora localizava o problema no preconceito da família da personagem, indaga: “Mano, a novela está educando essa senhora?”.

E compara o conteúdo da telenovela com aqueles criados por Youtubers ativistas e pela ciência: “Ela não viu isso em um conteúdo militante do YouTube, ela não participou de palestras”. Por fim, sinaliza que ali existe um imaginário trans, pois “ela não conhece transexuais na vida real”. Lorelay se encanta quando percebe que “a novela conseguiu chegar numa senhorinha de 70 anos, de uma maneira que [ela] jamais chegaria, de uma maneira que a maior parte dos conteúdos jamais chegaria” e, a partir disso, questiona: “cara, não sei se essa novela está fazendo tudo certo, se pode ter algum close errado, alguma ideia meio distorcida, não sei”, porém, entende o mais importante de toda a narrativa de sua diarista: “ela absorveu aquilo e criou empatia, criar empatia é o que a gente precisa. Para que alguém esteja do nosso lado, para que alguém aceite e apoie as diferenças, a gente precisa só da empatia e a novela fez isso com ela”. A partir deste momento, Lorelay entende que a telenovela tem receptores que questionam a realidade social a qual está inserida: “ela entendeu a transexualidade e também entendeu que drag queen não tem a ver com trans [...]. Gente!!! Gloria Perez, querida... emocionada... juro que fiquei emocionada quando ela falou [...] me veio aquela alegria, assim, feliz, feliz” (FOX, 2017). E, em seguida, faz uma crítica às análises que normalmente consideram os produtos culturais televisivos como alienantes: “

É por isso que programas [...] que [...] abordem mais esses temas de maneira séria, que é o caso do Amor e Sexo que eu já participei [...] vão chegar ao público [...] acaba sendo, sei lá, tocado, vai se descontruindo, e a gente não pode menosprezar isso e temos que valorizar isso. (FOX, 2017).

Narrativa da transexualidade na telenovela “A Força do Querer”

A personagem Ivana, desde o início da novela, revela uma inconformidade consigo mesma, como conta numa das sessões de terapia, no capítulo do dia 17 de julho de 2017: “Não aguento mais olhar no espelho e não reconhecer a figura que o espelho tá [sic] mostrando, não sou eu! Não aguento mais brigar com meu corpo o tempo todo, sentir que meu corpo tá errado, sentir que eu to [sic] numa embalagem trocada”. Nesta fala, que exemplifica tantas outras da personagem, a novela coloca em questão a inadequação que Ivana tem com o gênero feminino, não somente em relação à sua imagem e ao seu corpo, mas em assumir os aspectos que envolvem o universo feminino, como as roupas consideradas próprias de seu gênero – vestidos, sapatos de salto alto, rendas, babados, maquiagem; e o comportamento considerado “adequado” da mulher na nossa sociedade, como delicadeza e passividade. Ao refutar esses protocolos, a personagem afirma se sentir “fora dos padrões”, devido à sua incapacidade em corresponder com a ideia de feminino estabelecida na sociedade. Essa inadequação denúncia o caráter performativos de todos os gêneros, como defende Butler (2003), “o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (p. 59). A identidade de gênero, portanto, é uma prática discursiva contínua, que se constrói a partir da repetição de atos ao longo do tempo. Isso permite compreender, segundo Butler, o quanto as noções de sexo essencial e de feminilidade ou masculinidade verdadeiras e permanentes são constituídas de forma a ocultar o caráter performativo, que significa incorporar as marcas de gênero.

Muitos capítulos foram dedicados a mostrar a inadequação da personagem aos padrões (impostos) ao gênero feminino. Além da vestimenta, a personagem também se sente incomodada em ter que se comportar exatamente como é esperado que uma mulher se comporte socialmente. No trecho a seguir, do capítulo do dia 11 de abril de 2017, Ivana conta sobre o encontro com o namorado, Cláudio (Gabriel Stauffer), para a prima e amiga, Simone (Juliana Paiva), relatando esse modelo de conduta:

Ivana: Ele estava todo artificial, sabe, tava me tratando como se eu fosse uma criança, ele abria a porta do carro, puxava a cadeira... [...]. O pior, Simone, foi quando a gente chegou no restaurante, o garçom trouxe a carta de vinho, começou o telefone sem fio. Ele perguntou o que eu queria, para ele falar para o garçom, sendo que o garçom tava aqui do meu lado, escutando tudo que eu tava falando. [...] detesto esse joguinho, parece que você, sei lá, tem que se fingir de surda, cega. [...]. Parecia que a gente tava seguindo um script, representando um papel.

Nesta transcrição, Ivana chama de “joguinho” o fato do comportamento deles já ter sido preestabelecido, como se estivessem representando um papel. Mas é isto que fazemos socialmente, o que Butler (2003) denomina de performatividade. Representamos nossos gêneros através de um conjunto de atos repetidos, que são constituídos no interior de uma estrutura reguladora, que por se cristalizar no tempo, tem-se a falsa noção de ser natural. Ao transgredir a norma de gênero que determina a conduta adequada para o feminino, Ivana traz à tona o caráter performático dessa conduta. Pois, tornou-se uma obrigação social assumir as performances do gênero, qualquer outra forma de se comportar é considerada transgressora, fora da ordem, portanto, ilegítima. É o que a autora denomina de “ordem compulsória da heterossexualidade” – em que estamos todas e todos submetidos, responsável por estabelecer somenteuma forma inteligível de sexualidade: a heterossexual, e ainda, sempre dada como naturalmente concebida.

Numa tentativa de se adequar aos padrões femininos, recomendado pela sua terapeuta, que acredita que ela bloqueou o feminino que há dentro dela devido à expectativa exagerada da mãe, Ivana se esforça para cumprir com as exigências de “seu” gênero. Ao experimentar uma lingerie, que segundo a prima, “não há nada mais feminino que isso”, Ivana afirma se sentir “esquisita”. Na transcrição abaixo, do capítulo do dia 11 de maio de 2017, Ivana conta para a terapeuta, a psicóloga Eva (Ester Jablonski), como se sentiu:

Ivana: Eu me senti fantasiada, pronta para ir num bloco, não sou eu, aquilo não tem nada a ver comigo. Não é que eu ache feio, eu acho bonito, ficou lindo na Simone, mas em mim, e m mim destoa, eu me sinto uma bruta com aquelas rendinhas todas, tipo um elefante de saiote, sabe?

Eva: Ah Ivana, é natural esse estranhamento todo. Você tava ali tentando resgatar sua feminilidade, mas diante de outra pessoa, diante do olhar de outra pessoa, diante da expectativa de uma outra pessoa. E foi exatamente por isso que você sufocou a sua feminilidade, por receio de não corresponder às expectativas da sua mãe.

Neste diálogo, Eva interpreta o sentimento de inadequação de Ivana, partindo do pressuposto de que há uma feminilidade dentro dela, que com o tempo e com a ajuda profissional, conseguirá resgatá-la, como se possuísse em si mesma uma essência feminina. Com essa concepção, a terapeuta ignora a própria experiência da pessoa, sua própria condição, para insistir num ideal normativo construído socialmente.

Entendemos que o discurso da telenovela foi elaborado para mostrar que não nascemos prontos e integralmente ligados a este ou aquele universo, instituído de forma binária entre o feminino e o masculino, em que o indivíduo se vê obrigado a se encaixar em um ou em outro. A transexualidade se refere, justamente, na percepção que a pessoa tem de si mesma, nas possíveis e variáveis identificações identitárias, que transpassam esse binarismo, desestabilizando-o.

Para Bento (2006, 2008), o corpo sexuado, que dá inteligibilidade aos gêneros, encontra na experiência transexual seus próprios limites discursivos. A autora evidencia essa experiência como caracterizada por deslocamentos, ou disputas entre o gênero e o corpo sexuado. Para ela, existem pelo menos três deslocamentos possíveis na experiência transexual. A primeira se dá entre o gênero e o corpo sexuado, quando os(as) transexuais alteram a aparência do gênero com intervenções cirúrgicas, hormonais, uso de maquiagem, etc.; o segundo deslocamento acontece entre o gênero, a sexualidade e o corpo sexuado. Como o(a) transexual reivindica pertencer ao outro gênero e corpo sexuado, supõe-se assim, que seu objeto de desejo será o sexo oposto ao assumido, dado.

efetivamente como heterossexual; e o terceiro deslocamento se refere aos olhares que os(as) transexuais são submetidos, pois o olhar classifica o gênero e a experiência transexual coloca em dúvida o olhar, não sendo possível saber qual a anatomia que está coberta pelas roupas.

A partir do pensamento proposto por Bento encontramos os três deslocamentos da experiência transexual na construção da personagem Ivana/Ivan, a começar pelo primeiro deslocamento, quando a personagem Ivan aparece de barba e bigode, efeito dos hormônios. No capítulo do dia 1º de setembro de 2017, numa conversa com Elis (Silvero Pereira), Ivan fala sobre a reação que sua mãe teve ao vê-lo pela primeira vez com barba e bigode:

Ivan: A minha mãe fugiu de mim, Elis, ela nem disfarçou. Ela me olhou assim como se eu fosse um fantasma.

Elis: Dá um tempo para ela, é uma situação nova, inclusive para você. Olha, agora, você está aqui escondido, mas depois, você vai ter que voltar para o seu mundo, para os seus amigos, seu vôlei, só que com uma aparência nova.

As mudanças hormonais e/ou cirúrgicas que os(as) transexuais realizam, criam uma ruptura com a ordem dos gêneros, permitindo que a pessoa transite entre ambos os universos, contendo em si mesma o feminino e o masculino ao mesmo tempo. Outra possibilidade que esse desvio entre o corpo sexuado e o gênero ocasiona, representado também na telenovela, é a possibilidade de gravidez em corpos de transhomem, que pode causar ainda mais impacto, pois a aparência é masculina, mas a maternidade é uma característica própria de um corpo de mulher. Essa situação cria uma confusão no que a sociedade entende como os elementos que fazem parte do gênero feminino e do masculino, talvez, seja a condição mais transgressora para a estabilidade das normas de gênero.

Mais um ponto abordado na novela, referente ao primeiro deslocamento, é a cirurgia de mastectomia, que para Ivan, seria a concretização da correção entre seu corpo e mente, mas para sua mãe, esse procedimento nada mais é que uma mutilação, ou seja, é a degradação de um corpo que nasceu “perfeitamente” saudável. Ao tomar esse procedimento como uma contravenção, ou mesmo, como um desrespeito à humanidade, os(as) transexuais são estigmatizados(as), mas como lembra Preciado (2014), a sociedade ignora o fato de que todos passaram pela primeira operação simbólica ao nascer, qual foram instituídos como pertencentes a um dos sexos e, consequentemente, este determinou o gênero e a posição social que cada um deveria ocupar.

As operações mais conhecidas sob o nome de cirurgia de mudança de sexo e de retribuição sexual, que são popularmente estigmatizadas como casos limites ou exceções estranhas, não passam de mesas secundárias nas quais se renegocia o trabalho de recorte realizado sobre a primeira mesa de operações abstrata pela qual todos nós passamos. (PRECIADO, 2014, p. 128).

O segundo deslocamento acontece entre o gênero, a sexualidade e o corpo, qual assinala a independência da orientação sexual em relação ao gênero. Quando o(a) transexual passa a pertencer ao outro gênero e corpo sexuado, supõe-se que seu objeto de desejo será, consequentemente, o sexo oposto ao assumido, presumindo- o(a) como heterossexual. Essa convenção, por ter se tornado uma obrigação social, confunde a própria personagem transexual, como no diálogo a seguir, entre Ivana e sua terapeuta, no dia 10 de agosto de 2017:

Ivana: Eva, eu ainda não me sinto encaixada, mas eu sei onde me encaixo, só tem uma coisa que ainda me incomoda, me perturba, o Cláudio, não mudou nada em relação ao Cláudio, quero dizer, os meus sentimentos, eu amo o Cláudio, eu continuo sentindo atração por ele.

[...]

Eva: Você está mudando de gênero, não de sexualidade, são coisas diferentes. [...] Você tem amigos homens que são gays, não tem? As pessoas nascem homens ou mulheres, mas a sexualidade delas pode estar direcionada para pessoas de sexo diferente ou pessoas do mesmo sexo. As pessoas podem ser heterossexuais ou gays.

A explicação da psicóloga deixa claro que a identidade generificada e a sexualidade são coisas distintas, que funcionam independentes uma da outra. Já o terceiro deslocamento, refere-se aos olhares depositados às pessoas trans, que carregam em si as ambiguidades dos gêneros. Sobre esse julgamento social, em que a aparência está submetida. Simone e Ivana conversam, quando ela decide realizar a transição

Simone: Se as tuas mudanças forem acontecendo, mesmo aos poucos, seu visual vai ficar bagunçado, né? Sei lá, vai ter características de homem misturadas com a de mulher, você acha que está preparada para isso? Tô falando de receber os olhares das pessoas.

Para a prima, é uma questão de avaliar se a escolha da transição é mesmo viável, e pergunta se Ivana está preparada, já que em nossa sociedade, é muito difícil “receber os olhares das pessoas” quando não se apresenta de uma forma inteligível. O transexual T. também afirma isso no capítulo do dia 30 de agosto de 2017: “é muito difícil carregar um corpo que não é seu. O corpo é a identidade da gente, a identidade da gente tá ali. Se você tá no corpo, as pessoas sempre cobram de você uma coisa que você não é, uma coisa que você não pode ser”. Nessas palavras, verifica-se que, se a pessoa está num corpo que não se identifica, é “cobrada” a se portar de acordo com a inteligibilidade desse gênero, mas sua inadequação a esse gênero torna essa cobrança uma impossibilidade a ser cumprida, como também, quando a pessoa está no processo de transição, com a aparência “bagunçada”, tanto corresponder ao gênero estabelecido no nascimento quanto a cobrança social tornam-se impossíveis de se realizar, pois se a pessoa apresenta características de homem e de mulher ao mesmo tempo, em que gênero ela deve ser cobrada? Daí a impossibilidade de enquadrá- la exatamente neste ou naquele gênero.

A telenovela também construiu uma identidade transexual representada através de uma estratégia comunicacional de combinar cenas sobre os conflitos de Ivana, que desconhecia a razão de sua inadequação ao gênero feminino, seguidas das explicações da travesti Elis Miranda, que ocupava uma posição de especialista no assunto. Percebemos nessa composição de cenas, uma construção exata e precisa do que é ser transexual, como rejeição e ódio aos órgãos sexuais. No caso do transhomem, essa aversão é mais forte em relação aos seios, Ivana surra seus seios entre um capítulo e outro, usa faixas para escondê-los e sempre afirma “eu queria tirar, não queria que eles tivessem nascido”. Outra característica é a dificuldade em ter relações sexuais. Num comportamento assexuado, a personagem sempre foge do beijo e/ou do toque físico com seu namorado, e quando perde a virgindade com ele, sente-se mal por causa de seu próprio corpo.

Bento (2006) chama isso de “dispositivo da transexualidade”, construída a partir da década de 1950, quando o saber médico estabeleceu a verdade sobre a transexualidade em seus primeiros estudos sobre este “fenômeno”. A HBIGDA tornou- se a responsável pela normatização do tratamento para os(as) transexuais em todo o mundo, que através do livro “El Fenómeno transexual” de Harry Benjamin, indica os parâmetros para diagnosticar o “verdadeiro” transexual. Segundo o sexólogo, o verdadeiro transexual se enquadra nesses seis parâmetros: vive uma inversão psicossocial total; apenas vestir as roupas do gênero assumido não é suficiente; sente intenso mal-estar de gênero; deseja intensamente manter relações com homens e mulheres normais (ou seja, heterossexuais); solicita a cirurgia com urgência (mudança de sexo); e odeia seus órgãos.

Para Benjamin, a única “solução” possível para os(as) transexuais é a cirurgia, pois como o(a) transexual tem aversão aos seus órgãos, toma-o como assexuado e através da intervenção cirúrgica, poderá exercer sua sexualidade de forma “normal”, apropriada, portanto, define-se como heterossexual. Porém, Bento (2006) verificou em seu trabalho de campo que muitos(as) transexuais não se encaixam exatamente nesses parâmetros. De acordo com os relatos obtidos, os(as) transexuais não são assexuados(as) e também não solicitam a cirurgia motivados(as) pela sexualidade, mas acima disso, para ter inteligibilidade social. Como sua pesquisa mostra, muitos(as) não se importam em mudar a genitália, pois já se sentem homens/mulheres e esse sentimento de pertencimento de gênero é maior do que o sexo. A experiência, na prática, contrasta com o(a) transexual estabelecido(a) nos documentos oficiais. Como Bento (2008) afirma: “as intersecções entre uma narrativa e outra não são suficientes para se concluir que haja um núcleo comum compartilhado por todos os que vivem a experiência transexual” (p. 53).

Para a autora, o problema consiste nesse poder/saber que produz a verdade transexual e o(a) enquadra numa matriz heterossexual, é o que ela denomina de dispositivo da transexualidade, que funciona para corrigir as ambiguidades e instaurar a coerência da identidade de gênero e do corpo sexuado. Por isso, Bento (2006) acredita que não existe uma identidade transexual, mas sim a experiência transexual. Para ela, mesmo que existam alguns pontos de unidade entre os sujeitos que vivem essa experiência, isso não permite concluir a existência de uma identidade transexual, no sentido de uma identidade universal e/ou absoluta.

Ainda assim, quando um sistema representacional, como a telenovela, utiliza-se de seu poder para transmitir informações de utilidade pública e contribuir com a formação discursiva a favor da diversidade, da inclusão social e da liberdade do indivíduo em se reconhecer fora da norma estabelecida para as identidades generificadas e sexuadas, tendo autonomia para se expressar socialmente, mesmo com as incoerências percebidas ao longo da análise sobre a construção de uma identidade transexual, seu papel se revela de grande importância para o contexto atual, e para possíveis mudanças em nosso país. A própria experiência transexual proporciona a construção de novos significados para os gêneros: “o gênero só existe na prática e sua existência só se realiza mediante um conjunto de reiterações cujos conteúdos são frutos de interpretações sobre o masculino e o feminino” (BENTO, 2006, p. 178). Dessa forma, as estruturas que produzem e regulam o gênero são cambiantes e possíveis de serem transformadas, quando mais, reforçadas pelos sistemas de representação, que lhes tornam visíveis.

Tessitura de narrativas: mediações e o processo de midiatização

Implica [...] sustentar que a aceleração temporal, por intervenção tecnológica nas coordenadas do espaço-tempo, altera modos de percepção e práticas correntes na mídia tradicional, logo, altera comportamentos e atitudes na esfera dos costumes, normalmente pautados pela mídia. Isto significa que está se gerando uma nova ecologia simbólica, com consequências para a vida social. (WOLFART, 2009).

Acompanhando o raciocínio de Sodré, esta “ecologia simbólica” está conectada aos ethos midiatizado. Para o autor, “o logus [é] a razão de ser do cosmo e o ethos [é] a vida humana em sua naturalidade e em sua cotidianidade dos hábitos, costumes e afetos” (SODRÉ, 2006, p. 25), sendo o ethos midiatizado a cotidianidade da vida humana estruturada por meio dos processos comunicativos midiáticos, “ou seja, os mecanismos de inculcação de conteúdos culturais e de formação das crenças são atravessados pelas tecnologias de interação ou contato. Passamos a acreditar naquilo que se mostra no espelho industrial” (WOLFART, 2009).

Portanto, nos processos comunicacionais aqui analisados, constituídos por meio da telenovela (televisão) e os vídeos de Lorelay Fox (internet/redes digitais), situados nesta nova “ecologia simbólica”, podemos dizer que existem elementos de grande força integradora, talvez, com maior força que na cultura de massas, que edificam este ethos midiatizado, que fala Sodré. As “mediações” são as “construções que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural” (MARTÍN- BARBERO, 1997, p. 292). As mediações são alicerçadas pela circulação social dos artefatos culturais e, por isso, integram de forma conflituosa os sujeitos, inclusive na produção e na recepção dos produtos culturais midiáticos. Bastos (2012), analisando esta apreciação de Martín-Barbero, diz que “[a] mediação surge como um conceito que reinsere a luta de classes no invisível da trama social, luta que pode ser observada nas negociações de sentido que permeiam o consumo de produtos midiáticos” (p. 64). Por isso, “o conceito de mediação [tem que ser entendido] como o ponto central da produção do sentido social” (BASTOS, 2012, p. 63). Acreditamos que, dessa forma, na “relação comunicativa, além da informação veiculada pelo enunciado, portanto, além do que se dá a conhecer, há o que se dá a reconhecer como relação entre duas subjetividades, entre os interlocutores” (SODRÉ, 2006, p. 10). Assim,

[a] midiatização seria um processo de longa duração que inclui a mediação e que é formado pela contínua ação dos media. Esse metaprocesso assume que os meios de comunicação não apenas modificam as estruturas sociais, culturais e políticas [...] uma vez que as ações sociais, os produtos culturais e os programas políticos tornaram-se eles todos mediais (BASTOS, 2012, p. 69).

Desta maneira, no processo de midiatização, devemos considerar a recepção dos produtos culturais midiáticos, de forma diferente daquela que ocorria na cultura de massas. Jacks (2008), demonstrando as discussões teóricas que “ambientaram” os seus vários estudos sobre a recepção de produtos culturais, chama-nos a atenção para os argumentos de Martín-Barbero sobre as pesquisas de recepção na atualidade:

As mudanças históricas – que poderíamos chamar de mediações exteriores à comunicação – e a introdução de novas tecnologias – interiores ao campo – fazem mover as teorias, e, nesse caso, Martín-Barbero está atento tanto aos meios que operam pontualmente quanto aos que estão operando transversalmente, como é o caso da internet. (JACKS, 2008, p. 3).

A partir da definição de “mediação”, certamente há uma verdadeira negociação de sentidos no processo comunicativo e, ser receptor nas redes digitais – no caso do canal “Para Tudo” de Lorelay Fox – é ser também produtor das narrativas. Para a autora:

São configuradoras dessa tensão e compõem as mediações comunicativas da cultura a socialidade, a ritualidade, a tecnicidade e a institucionalidade dispostas entre dois eixos: um diacrônico, de longo alcance, tensionando as matrizes culturais e os formatos industriais; e um sincrônico, constituído entre as lógicas de produção em sua relação com as competências de recepção e consumo. (JACKS, 2008, p. 5).

As redes digitais se instituem como espaços de comunicabilidades sempre por meio dos usos e das apropriações que os atores e/ou autores sociais fazem delas. Esses usos são delimitados pelas características próprias da tecnologia, uma vez que consideramos que os ambientes digitais são “territórios”. Sendo assim, existe ali o “mapa” (SILVA, 2001), que diz respeito à “cartografia física” que cria oficialmente os limites dos espaços geográficos – presenciais e virtuais – e estes passam a ser, também oficialmente, reconhecidos pelos sujeitos; e o “surgimento de uma ‘Cartografia Simbólica’, equiparando-se com a física e que deverá ocupar-se do levantamento dos croquis” (SILVA, 2001, p. 24), cujo destino “é representar tão somente limites evocativos ou metafóricos, aqueles de um território que não admite pontos precisos de corte, por sua expressão de sentimentos coletivos ou de profunda subjetividade social” (SILVA, 2001, p. 24). Portanto, os sujeitos que ali interagem não são libertos das regras, como talvez suponham. Assim, as negociações e os agenciamentos são efetuados nas “brechas”. Por isso, as tensões existem. E são nessas brechas que encontramos o “croqui”. Para Cogo e Brignol (2010):

As possibilidades múltiplas de produção de sentido abertas pelas práticas na web, com a individualização crescente das escolhas e a multiplicação dos conteúdos no ciberespaço, vêm reforçar a necessidade de abandonar a ideia de massa e ampliar, no contexto dos estudos de recepção, o debate em torno das redes sociais como ambiência mediada.

Neste sentido, as redes digitais pressupõem a “tecno-interação”, que colabora com o ajustamento do processo da midiatização. Este tipo de interação, para Sodré, ocorre:

Em função das transformações urbanísticas (novos conceitos de cidade, novas formas de habitação etc.), os indivíduos tendem a se relacionar à distância, compondo o que já se chamou de “telerrealidade” social. A interação passa a depender dos dispositivos de mídia (internet, rádio, televisão etc.), portanto, é visceralmente atravessada pelo fenômeno da midiatização. (WOLFART, 2009).

Em entrevista, Wolfart (2009) indaga Sodré sobre as consequências sociais da “telerrealização das relações humanas”, no qual, o sociólogo considera que:

A principal é a redefinição dos modos de constituição da comunidade humana. A corporeidade – logo, as tensões e os conflitos decorrentes da proximidade no corpo coletivo – tende a ser neutralizada pelos dispositivos tecnológicos. Não há aí nenhuma catástrofe, tão só um novo modo de instalação do corpo humano na rede social, agora tecnologizada. (WOLFART, 2009).

Obviamente que no Brasil, a telenovela, como o principal produto da televisão brasileira, auxiliou e auxilia na construção do processo de “midiatização” que vivenciamos hoje, pois as telenovelas sempre estiveram inseridas no cotidiano experienciado pela recepção. Isso é histórico na cultura da recepção da telenovela brasileira.

Levando em consideração essas novas ambiências, a partir da “articulação do funcionamento das instituições sociais com a mídia”, como pontua Sodré na entrevista dada a Wolfart (2009), encontramos no “fazer narrativo”, um dos principais elementos presentes na intertextualidade do processo comunicativo midiatizado, aqui analisado. Contar, narrar, discutir as cenas, personagens, enredos, sempre fizeram parte do hábito de seus sujeitos receptores, assim como acontece nas redes digitais.

Habito [...] é uma disposição estável adquirida pelo indivíduo e incorporada a seu modo de ser como algo que ele “tem” [...] e persiste, a fim de adaptá-lo às circunstâncias de seus ambientes. Os hábitos em suas modalidades, ativas e passivas, constituem a moralidade, os modos de viver os sentimentos e o exercício social das faculdades intelectivas e afetivas de um indivíduo. (SODRÉ, 2006, p. 81).

Por isso, o prazer da recepção nunca se localizou somente em assistir a telenovela, mas também, em contá-la. “Desse modo, a telenovela não aconteceria no significado textual do roteiro filmado, mas na circulação social de boatos e comentários, no bate-papo diário entre vizinhos” (BASTOS, 2012, p. 64). E foi este o prazer da “senhorinha”, diarista de Danilo/Lorelay. Nesse sentido, podemos dizer que a própria estrutura serializada, fragmentada, enovelada da telenovela interpela à recepção para que outras narrativas sejam propostas por meio de suas histórias. Lorelay demonstra essa interpelação quando salienta que sua diarista “estava muito empolgada, quando o cara transexual, finalmente ia cortar o cabelo e adequar o visual dele para o gênero dele, ela estava super empolgada, queria ver a transformação” (FOX, 2017).

Martín-Barbero e Rey (2001) há muito tempo já trabalharam a forte relação de prazer entre aqueles que produzem e aqueles que recepcionam os produtos culturais televisivos, salientando a telenovela. Três artefatos na composição da telenovela são fundamentais para que esta relação se estabeleça: a “predominância do contar”, que leva, capítulo a capítulo, a continuidade dramática; a “abertura indefinida do relato”, que mostra quando começa, mas não quando acaba; e o “texto dialógico” em que autor, receptor e personagem trocam de posições constantemente (MARTÍN BARBERO; REY, 2001, p. 150). Esses três elementos estão claramente colocados nesta melange criada entre a telenovela, a receptora, o ouvinte Danilo, a produtora de conteúdo artivista – Lorelay Fox, e as juventudes, suas interlocutoras. Primeiramente, o prazer no “contar” a história recepcionada: podemos imaginar – por meio da narrativa de Lorelay – que houve um prazer intenso da “senhorinha de 70 anos” em contar o enredo da telenovela a um ouvinte, e o quanto este prazer pode ser aumentado quando se conta a uma drag queen, pois a sua maneira, parece que a diarista sabe que “a performance da Drag” brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado” (BUTLER, 2003, p. 237). Segundo, o prazer que se localiza na escuta de Danilo, que levou a um outro contar, de uma mesma história. E, por fim, o prazer dos interlocutores do canal de Lorelay, inclusive em contarem suas próprias histórias sobre a novela, percebido em muitos dos “comentários” em seu canal. Segue um deles, de JCR, a título de exemplo:

Minha avó é uma dessas senhorinhas. conseguiu entender muito mais de diversidade e inclusive me entender melhor através desta novela e da novela Senhora do Destino que tem um casal de meninas (se eu não estiver enganado, era esse o nome que ela falou). esses dias por alguma razão enquanto almoçávamos, surgiu o assunto da adoção por casais LGBT, manas: eu fiquei pasmo com a minha véia defendendo a adoção e usando como razão maior pra defender, o AMOR antes de qualquer outra coisa. ela disse ainda que antes de falarem mal dos casais que adotam, deveriam ir atrás dos pais que largaram a criança na rua ou num orfanato. ainda falou que é muito importante falar a respeito de todos os assuntos em todos os lugares possíveis pra que mais pessoas entendam e aprendam a viver com as diferenças. eu morri de amor <3 PS: ela tem 75 aninhos2.

Fica evidenciado a importância das narrativas tanto para os ouvintes quanto para os criadores. Entendemos que “narrar é uma forma de exteriorizar a existência individual e coletiva, é a expressão da temporalidade humana” (COSTA, 2000, p. 43). As juventudes contemporâneas – maioria dos interlocutores do canal “Para Tudo de Lorelay Fox”, e o próprio Danilo, que dá vida à Lorelay – constroem suas subjetividades por meio das imagens eletrônicas e digitais. Como bem coloca Rincón (2006), “a comunicação midiática produz uma cultura que se caracteriza por ser mais de narração e afetividade que de conteúdos e argumentos” (tradução nossa3). Sendo assim, as narrativas midiáticas em contextos midiatizados, contidas na intertextualidade aqui deflagrada, constroem subjetividades, partilham escutas e promovem o recriar de outras narrativas e, assim, integram durações e temporalidades.

Não é novidade as personagens transexuais, transgêneros e travestis povoarem os enredos das telenovelas brasileiras. O que é inédito em “A força do querer” é a problematização das transexualidades. É importante dizer que essa problematização também esteve presente em uma série intitulada “Quem sou eu?”, veiculada como um quadro do programa “Fantástico”, exibido aos domingos, pela Globo, em horário nobre. A série veiculada em quatro capítulos, de 12 de março a dois de abril de 2017 – portanto, um pouco anterior a “A força do querer” – mostrou a vida das pessoas trans em suas diferentes fases. O que queremos dizer com isso é que o receptor assíduo da Rede Globo, estando nas redes digitais ou não, começa a ter um maior contato com as narrativas audiovisuais que problematizam as transexualidades, a partir de 2017, principalmente, resgando as dores e sofrimentos das pessoas trans. Depois disso, vários programas desta emissora passaram a discutir a temática.

Sem sombra de dúvidas, o sofrimento excessivo da personagem Ivana/Ivan é característico do melodrama, uma vez que este território de ficcionalidade compõe os principais núcleos das telenovelas brasileiras, principalmente, aquelas veiculadas no horário nobre, e possui grande aceitação dos receptores (TRANQUILIN-SILVA, 2007). No caso das narrativas da e sobre a telenovela, aqui analisadas, há um resgate mais incisivo das dores de pessoas trans, mas, ao fazê-lo, coloca em evidência as experiências dolorosas e sofridas, cotidianamente, pelas pessoas LGBTIQ, dado que os direitos conquistados por elas e ampliados nos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, resultado de lutas sistemáticas, começam a se esvair a partir de 2010, pois, neste ano, tivemos na política institucional brasileira, a retomada da chamada “direita”. A partir de 2011, as temáticas LGBTIQ passam a ter maior visualidade nas mídias tradicionais, assim como, nas redes digitais, por conta do contexto político em que vivíamos: em 2011, a presidenta Dilma Rousseff, cedendo à pressão dos congressistas conservadores, suspende um importante projeto denominado “Escola sem Homofobia” – que ficou conhecido pejorativamente como “Kit Gay” –, o qual tinha como uma de suas ações a entrega de um material didático aos professores, criado por especialistas e pessoas do movimento LGBTIQ, para que pudessem trabalhar as questões de gênero pelo ângulo das ciências humanas e não somente pelas ciências biológicas. Em 2013, o deputado federal Marco Feliciano, pastor evangélico, declaradamente transfóbico, misógino e machista, é eleito para presidir a Comissão dos Direitos Humanos; em 2014, toma posse o Congresso mais conservador desde 1964 (quando do advento do golpe militar), e “a tensão criada pelo debate de pautas como a legalização do do casamento gay e a descriminalização do aborto deve se acirrar no Congresso, agora com menos influência de mediadores tradicionais (os progressistas), que não conseguiram se reeleger” (SOUZA; CARAM, 2014). Em abril deste mesmo ano, parlamentares conservadores conseguem tirar do Plano Nacional de Educação (PNE) a expressão “gênero”.

Mariana Tokarnia, da Agência Brasil, identifica as modificações do texto do PNE: De “são diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual’”; para: “erradicação de todas as formas de discriminação”. Deputados conservadores apontam que “colocar a questão de gênero e orientação sexual vai favorecer o que chamaram de ‘ditadura gay’ e ‘ideologia de gênero’”. Jair Bolsonaro, na época deputado federal e hoje presidente do Brasil, levanta um cartaz com os dizeres: “volta para o zoológico”, insultando os estudantes e os movimentos sociais (TOKARNIA apud CASTRO, 2018, p. 143). Ainda em 2014, depois de Dilma Rousseff ser reeleita para seu segundo mandato à presidência da República, os mesmos conservadores preparavam, com apoio, inclusive, das mídias tradicionais, o “Golpe disfarçado de Impeachment” (GOMES, 2018, p. 148) – ocorrido em 2016.

Neste cenário, os direitos conquistados pelos LGBTIQ, princpalmente, depois do “Golpe”, vêm sendo usurpados e a violência sofrida pela população trans, que já era grande, passa a ser maximizada. Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), “o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo” (MOTT; MICHELS; PAULINHO, 2017). A Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA – disponibiliza o “Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil”, dados que demonstram essa violência: em 2017, foram contabilizados 179 assassinatos. A ANTRA disponibilizou em seu site, o “Mapa dos Assassinatos” ocorridos em 20184:169 pessoas trans foram assassinadas de primeiro de janeiro a 31 de dezembro de 2018.

Vale ressaltar também que à medida que cresce a intolerância no cenário brasileiro, em relação à população LGBTIQ, aumenta a resistência a partir da grande retomada dos movimentos sociais LGBTIQ, de criação de instituições ligadas a eles, do crescente número de pesquisas e eventos acadêmicos entorno das questões de gêneros. Ainda tomam força nas redes digitais brasileiras, o ativismo e artivismo de gênero. Citamos como exemplo de ativismo digital de gênero a page do Facebook5 “Moça, você é machista” – administrada por dois transhomens – que discute o machismo de forma ampla, atua na construção do feminismo e problematiza as questões das travestilidades, transexualidades e transgeneridades (TRANQUILIN-SILVA, 2015, 2016) e (ROCHA; TRANQUILIN-SILVA, 2016). No Youtube, salientamos como modelar para o artivismo de gênero LGBTIQ, o canal “Para Tudo de Lorelay Fox”, uma vez que as drags são personagens artísticas, e como artivismo musical de gênero, enfatizamos a travesti Linn da Quebrada: “[a]rtista, performer, cantora, compositora, dançarina e atriz. [...] Linn da Quebrada é um corpo em constante transformação e movimento. [...]. Linn segue rodando o país com suas músicas sobre empoderamento e questões do universo TLGB6” . Linn se destaca como cantora e performer a partir das redes digitais. No YouTube, em 2016, lançou os singles “Talento” e “Enviadescer”, em 2017: “Bixa Preta” e “Bomba pra Caralho”, entre outros trabalhos, inclusive internacionais. Isso significa que a música e o corpo trans – como um corpo político – são protagonistas, dando visibilidade a toda uma representação de bixas, pretas, travestis do universo periférico, rompendo os limites das cartografias físicas e simbólicas, dadas pelos produtos culturais midiáticos brasileiros (TRANQUILIN-SILVA, 2017b). Dessa forma, podemos afirmar que existe um imaginário (SILVA, 2006) sobre a estética e as experiencias trans, sendo tecido no cotidiano por produções especificamente brasileiras – obviamente, que não só por elas–, de produtos culturais midiáticos.

Portanto, quando olhamos para este cenário, acreditamos que tanto os receptores da telenovela “A força do querer” e, especialmente, as juventudes, que inter-relacionam-se com o canal de Lorelay Fox, entendem que as relações de gênero imbricadas na “experiência transexual” (BENTO, 2006, 2008), narrada na telenovela, aciona um imaginário que tem como principal elemento o corpo das pessoas trans, posto que o corpo é sempre composto por “deslocamentos” entre o gênero e o corpo, culturalmente construídos, que abordam ou distanciam os sujeitos do poder, da ética, da potência de agir e da moral. Por isso, nesta imbricação de narrativas, aqui analisada, os corpos passam a ser corporeidades e corporalidades. Resgatando Butler (2003), corpos que demonstram que os gêneros são performativos.

Observamos, então, que o cotidiano exerce uma força integradora entre todos os sujeitos envolvidos no processo comunicativo aqui analisado. São (re)existências e resistências, dando “respostas aos acontecimentos” (WILIAMS, 1969) visto que todos estão imersos em um cotidiano e, por meio dele, compartilham repertórios e afetos.

Quando as experiências transexuais são autorizadas: Considerações finais

Vivenciamos na contemporaneidade, o processo de “midiatização” (HJARVARD, 2015), quando múltiplas formas de mídias estão dispostas nas práticas cotidianas ao mesmo tempo em que são institucionais, criando, assim, uma nova “ecologia simbólica”, de acordo com Sodré (WOLFART, 2009). Dessa forma, certificamos que as “mediações” (MARTÍN-BARBERO,1997), as quais dão base aos ethos midiatizados (SODRÉ, 2006), interconecta, não sem conflitos, os sujeitos em todos os processos comunicacionais, na produção e recepção dos produtos culturais midiáticos, sejam eles televisivos ou dispostos nos espaços virtuais.

Ao analisar a miscelânea de narrativas, deflagradas pela telenovela “A Força do querer”, a partir da personagem transexual Ivana/Ivan, entre muitos elementos de “mediação” existentes, elencamos o “cotidiano” como uma das grandes forças integradoras desse processo comunicativo: telenovela – receptora – ouvinte (Danilo) – produtora (Lorelay) – receptor/ produtor (juventudes interlocutoras do Canal de Lorelay).

Resgatando um pequeno cenário recente, a partir de 2010, mídias hegemônicas e não hegemônicas, assim como as redes digitais, destacaram o detrimento dos direitos e o avanço das violências contra a população LGBTIQ, principalmente, às pessoas transexuais. Porém, coloca-se também neste panorama, as múltiplas formas de resistência. É neste cotidiano que a telenovela vem problematizar o caráter performativos dos gêneros (BUTLER, 2003, p. 59) e seu binarismo sistêmico e estrutural, demonstrando que a “experiência transexual” (BENTO, 2006, 2008) ultrapassa, quebra, esvazia e desestabiliza este binarismo. Faz isso a partir de uma personagem branca, de classe média alta e que vive na considerada “família tradicional”, ou seja, um ambiente que, primeiramente, afirma a heteronormatividade branca e masculina, para depois questioná-la. Este mesmo cotidiano é compartilhado com Lorelay Fox/Danilo, drag queen e homossexual, que ao questionar se a telenovela está “educando” seus receptores – representados pela sua diarista – descobre as possibilidades de negociação de sentidos entre a telenovela e seus receptores. Esta constatação se torna possível no momento em que Lorelay acredita que sua diarista se colocou no lugar da personagem e compreendeu as diversidades das identidades de gênero, os preconceitos sociais e pode, a partir de agora, compreender a dor que os corpos trans sentem e, assim, passar a ter uma certa aceitação de suas existências. Essas existências há muito são acolhidas pelas juventudes, principalmente, LGBTIQ, interlocutoras do canal de Lorelay, as quais testemunham a importância desta temática ser discutida na telenovela e o quanto esta interfere na aceitação das orientações sexuais e identidades de gênero pelo outro, diferente a elas.

Ainda assim, quando um sistema representacional, como a telenovela, utiliza-se de seu poder de interlocução para contribuir com o conhecimento a favor da diversidade e da liberdade dos indivíduos em se reconhecer fora da norma estabelecida para as identidades generificadas e sexuadas, tendo autonomia para se expressar socialmente, mesmo com algumas incoerências percebidas ao longo da análise, seu papel se revela importante para as negociações e os agenciamentos a favor das diversidades de gênero.

Consideramos, então, que nestas múltiplas narrativas, a partir do cotidiano, as identidades individuas e coletivas (HALL, 2001) são visibilizadas, assim como, subjetividades são (re) construídas, e as vivências trans passam a ser autorizadas, pelo menos por um tempo, em um modo de existir midiatizado.

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Notas

1 Em um encontro casual na universidade, conversamos sobre o vídeo “Meu relato sobre a novela ‘A força do querer’”, criado e publicado pela drag queen e artivista digital LGBTIQ, Lorelay Fox, em seu canal “Para Tudo”. O vídeo teve 86.812 mil visualizações, dentre elas, houve 17 mil curtidas positivas e apenas 55 negativas.
2 Ver outras narrativas de interlocutores do vídeo: Obtido em http://https://www.youtube. com/watch?v=D03xHTeCfTo.
3 “La comunicación mediática produce una cultura que se caracteriza por ser más de narraciones y afectividades que de contenidos y argumentos.”
4 Obtido em https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1O4mvhh3OTAFp61U4sUb5hArN 4r5uEYBX&ll=-22.192613982460358%2C-53.01442628749999&z=5
5 Obtido em /https://www.facebook.com/pg/MocaVoceEMachista/posts/?ref=page_internal.
6 Obtido em http:// https://www.linndaquebrada.com/release .